DIAFRAGMA – Capítulo Primeiro.

em segunda-feira, 12 de julho de 2010

– árvore.

              Jeshil: “Os maiores desejos, Blozë, são transmitidos nos menores dos atos.”
              Blozë: “Você não deveria confiar muito nos seus olhos, Jeshil.”

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          Uma vez, quando eu ainda era pequeno o bastante para não entender porque os adolescentes se preocupavam com o vestibular, eu estava sentando no banco de trás do velho Escort dos meus pais esperando por minha mãe – que, por sua vez, estava logo adiante, comprando cigarros numa padaria que futuramente eu passaria a visitar com mais freqüência – quando presenciei algo que deu inicio ao que, hoje, é um dos meus maiores problemas internos (e eu não me refiro à puberdade, nem ao vestibular).

          Um casal de namorados – que mais tarde fui entender melhor o que era – aparentemente discutia. Digo ‘aparentemente’ porque hoje tenho minhas dúvidas quanto a isso. Afinal, eles podiam estar conversando e ela se exaltou, ou podiam estar se despedindo por um longo tempo e ela não queria aceitar a separação. Ou eles... Ela estava chorando, é isso.

          A imagem que tenho guardada da moça aos prantos foi mais do que suficiente para me certificar de que ela sentia uma profunda tristeza, mesmo naquela época – quando, pra mim, profunda tristeza era não ter uma festa de aniversário ou, talvez, ter ralado o joelho quando brincava de pega-pega na escola. E, mesmo naquela época, a ferida da moça me pareceu tão fresca que chegava a arder em mim, que nem ao menos sabia que ardência era aquela. Mas incomodava. Incomodou o bastante para eu querer saber sobre, quando minha mãe voltou ao carro, com um maço de cigarros e pastilhas anti-fumo (eu não conseguia entender o desejo paradoxal da minha mãe em parar de fumar).

          — Por que ela está chorando, Mãe?

          Ao contrário do que parece, e ao contrário do que eu penso hoje – porque, hoje, aquela cena deixou de acontecer apenas fora do carro, que delimitava meu presente mundo, e começou a se repetir no meu atual presente – a moça, o homem e o choro da primeira não assaltaram a vista de minha mãe, nem de nenhum dos pedestres que por ali passavam, como assaltara a minha. E, na época, me soou como uma ofensa quando minha mãe me mostrou isso com sua tão simples e automática resposta:

          — Ela, quem, Jeshil?

          Já estava me esquecendo, desculpem. Não me chamo Jeshil, apesar de ter o desejo de me chamar assim. E por questão poética, e por hora particular, decidi rebatizar as pessoas que mais apareceriam no meu relato, quando o decidi fazer. Mas voltaremos a isso depois; porque agora aquela conversa com minha mãe é de mais importância.

          — Ela, mãe. – apontei pela janela do carro, para alguns metros à esquerda. – Atrás das árvores, brigando com aquele moço.

          Minha mãe teve que fazer um pouco de esforço para ver o casal, e depois para entender o que estava acontecendo. E ela logo soube, porque deu um estalo com os lábios – como se quisesse dizer que não era nada – e deu partida no carro. Quando percebeu que eu ainda esperava por uma resposta, olhando pelo retrovisor, virou para mim como quem se despedia do filho na entrada da escola.

          — Ela devia estar triste com alguma coisa que ele fez, só isso.

          — Será que ele bateu nela? – a essa altura eu já estava no vão entre os dois bancos da frente, segurando para não rolar nas curvas.

          — Acho que não, filho. Eles só estavam conversando.

          — Então por que ela chorava?

          Hoje, eu não sei se eu era uma criança curiosa ou chata. Pela resposta da minha mãe, acho que eu ainda estava um pouco atrás do limite entre a primeira e a segunda opção.

          — Ela devia estar machucada.

          — Mas... Então ele bateu nela!?

          Minha mãe aproveitou a parada em um cruzamento para me olhar direto nos olhos, e foi aí que a semente da perigosa ‘árvore das decisões precipitadas e impensadas’ foi semeada pela primeira vez.

          — Sabe, Jeshil, você ainda não entende essas coisas, e de certo não vai entender o que eu vou dizer agora, mas, às vezes, quando os adultos se amam, esse amor pode chegar a tal ponto que ele deixa de ser apenas lindo, como era pra ser, e passa a ser destrutivo. Quando isso acontece, as pessoas se machucam, e a culpa não é delas, nem de ninguém.

          — Então é de quem? – perguntei como se não tivesse ouvido a última frase – O pai sempre disse que se existe a culpa, ela tem que ser de alguém.

          Minha mãe hesitou um pouco antes de responder, como se estivesse – e percebo isso só hoje – falando de algo que já fora pessoal, pra ela.

          — A culpa é do amor, Jeshil. É dele.

          Daí ela deu um sorrisinho, e eu me pus a olhar o caminho de volta pra casa, sem dizer nada. Naquele momento, eu refletia – ao máximo que me era permitido, pela idade – sobre o que havia acontecido, sobre a moça, o choro, a tristeza e a conversa com minha mãe. E depois de uns cinco ou seis quarteirões, eu cheguei à conclusão de que, não importasse o que viesse a acontecer, eu nunca, em hipótese alguma, amaria alguém.

          E a árvore brotou.

5 comentários:

Gabriel disse...

Excelente texto (como todos seus), Rafael. Deixou com uma puta sede dos próximos capítulos, viu. Abraço.

Luan do Carmo disse...

Outro excelente emaranhado de palavras formando uma excelente composição textual.

Ágda Santos disse...

Eu sempre chego aqui esperando algo. Chego sedenta, como se nunca tivesse lido algo seu. E é verdade. Nada é igual.
Eu gostei desse nome: Jeshil.
E Blöze já é um velho conhecido. rs.
Sua narrativa é tão gostosa e tão simples de mergulhar que quando acaba releio e releio. E releio.
A quebra de linha temporal no começo foi ótima! Sinceramente adorei. E faz um tempo que não escrevo assim.
Simplesmente fascinante como apenas você sabe escrever e por isso te peço: Termine a história.

Paula Thais disse...

Orgulhinho.

AGORA ESCREVE O SEGUNDO CAPÍTULO, BITCH.


p.s.: Só pra mudar um pouco o tom desses comments. Huahudhausdih

João Pedro Lima disse...

Enquanto lia só pude me lembrar daquele menino que eu conheci quando criança, e da padaria (talvez a mesma da história) na qual passávamos na frente.

Rafael, se vc fizer com Diafragma o mesmo que fez com clocks (naum terminar) te mato!

(mato nada, eu entendo como é difícil)

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