2 O’Clock

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       Eram duas da manhã, quando acordei com o peso da madrugada. Havia alguma coisa no ar que meus olhos, acostumados a pouca luz do cômodo, não identificaram. Ainda assim, sentia a angústia. Abri os ouvidos. Claro... Meus olhos não podiam ter visto o que me acordara; aquela melancolia que me assaltara o sono era não mais que uma melodia simplória, um choro lamentável que viera de algum canto do mundo e encontrara uma fresta para adentrar o meu.
       Tentei retomar o sono, mas meus ouvidos já estavam tomados por aquele som fino, constante, carregado de tristeza, e meus olhos procuravam, erroneamente, o caminho que ele decidira tomar. A luz da lua projetava sombras azuis – em formas de árvores secas – em minha cama, e, ao me pegar olhando-as, percebi que o choramingo melancólico só poderia ter entrado por ali: a janela, aberta. Iria acabar com aquilo.
       Foi quando me levantei e apurei meus sentidos que percebi que o choro nem era tão audível assim. Era de um jovem. Pela altura e intensidade, supus que ele devia estar longe, mas, quando cheguei à janela e me pus a observar a rua, constatei que isso era impossível de se saber: ele vinha de todos e de nenhum lugar.
       De qualquer maneira, longe ou perto, era frágil. Tão frágil que era claro que bastasse o fechamento da janela e nunca mais voltaria a ouvi-lo. Ele era oscilante, fraco. Incapaz de atravessar uma simples vidraça e voltar a me perturbar. Quando segurei os puxadores de madeira, dei uma última atenção àquela melodia vã, que chegava a ser ridícula, e não me assustei quando me peguei rindo.
       Sim, eu ri. Ri daquele ser fraco e deprimente que nem ao menos sabia chorar. Ri porque ele – ao contrario de mim – nunca soubera o que era ser feliz e nunca, em sua vida ínfima, fora amado. Caso contrário, não estaria em qualquer lugar no nada, chorando um choro tosco. Ri de sua ingenuidade ao pensar que, chorando, ficaria melhor; sem saber que – ao acordar, no outro dia, ele sentiria ainda mais dor.
       Aquele choro lamentável não era digno, nem ao menos, de pena. Eu fecharia a janela e ele não me incomodaria mais. Ele seria esquecido por mim e continuaria vagando pela escuridão azul da rua a procura de frestas nos mundos de outros. A procura de outras noites para pesar.
       Acontece que, quando fechei a janela e voltei para a cama, percebi que ainda podia ouvir o choro reverberando pelas paredes. E me assustei – desesperadamente – quando olhei pelo quarto e constatei que, sozinho, aquele ser que chorava lamentavelmente estava sentado na cama, pedindo socorro a si mesmo, sob o peso da madrugada.

Rafael M. Watanabe


em sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010 0 comentários

Além da Linha.

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        Não conseguia escrever. Tinha vontade, tinha idéias, tinha tempo e talento pra isso, mas as palavras simplesmente não saíam, elas ficavam presas em sua cabeça, embaralhadas, à espera daquela sentença que sairia primeiro e puxaria junto todas as outras. E se viu acomodado com a ideia de não escrever porque, certo dia, se viu sem motivos pra isso e – afinal – não escreveria sem motivos.
       Acontece que lá estava ele, sentado à beira do papel, com um grande motivo à mão... E as palavras simplesmente ainda teimavam em não sair. Talvez, pensou, fosse porque o motivo era pequeno demais, ou porque estava enferrujado; mas logo descartou tais pensamentos: sabia que nenhum dos dois era verdade.
       Então, em um momento de epifania, percebeu que talvez o problema não fosse a falta de motivos, mas sim a falta de metas. Por isso, quase como instinto, pegou a caneta e riscou uma linha no papel e disse que todos seus pensamentos improdutivos ficariam pra trás daquela linha.
       De certo modo, funcionou. Começou a ver as coisas com mais clareza e soube identificar certos pensamentos que não o ajudavam em nada e que, pelo contrário, só o atrapalhavam. Mas isso não era o bastante, ainda sentia que faltava algo. Por isso, pelo bom resultado que tivera anteriormente, riscou uma linha no chão e disse que tudo que ele inventara para fingir ter uma vida perfeita, todo o circo que fora armado ao redor de sua vida-sempre-boa, ficaria pra trás daquela segunda linha. E atravessou-a.
       Bom, de certo modo, também funcionou; mas de uma maneira diferente, uma maneira que ele não esperava. Aquela linha deixaria pra trás tudo aquilo que sempre o afetou, deixaria pra trás aquilo que sempre maquiara o grande motivo que – naquela ocasião – ele tinha em mãos para escrever, mas não escrevia. E ele pode perceber que, se não escreveu, não era porque o motivo era pequeno demais ou porque não tinha metas, mas muito pelo contrário: Todas suas palavras não conseguiriam costurar a tristeza que aquele motivo lhe causara.
       Do outro lado da linha, ele viu que fora criado por muito tempo dentro de uma jaula que, por sua vez, fora criada para o proteger do mundo; e viu também que, enquanto estava dentro da jaula, o mundo crescera e chegara a tal ponto em que ele, com suas poucas palavras, não era mais capaz de se defender.
       Sentiu medo. Sentiu tristeza e sentiu remorso. Conhecer a grandeza daquele motivo à escrita que tinha em mãos o fez pensar que talvez fosse melhor que ele voltasse e se envolvesse na lona daquele circo desarmado em que um dia viveu. Por isso, atravessou a linha de volta e rezou para que tudo voltasse ao estado – supostamente – normal.
        Mas isso, como esperado, não aconteceu. Ele já havia sido exposto e, agora, aquele motivo claro o esmagava cada vez mais, e continuaria esmagando até o ponto em que ele se visse parte do motivo – o que ele particularmente não queria.
       Pensou em como queria poder resolver tudo aquilo como sempre fizera, com palavras, mas chegou a mesma conclusão que chegará mais cedo: suas palavras não eram o bastante, não naquele momento, não no estado em que se encontrava. E, nesse estado, ele não era ninguém. Então, em um ato de desespero, decidiu traçar uma última linha e riscou – em sangue – uma linha em seu pulso. E foi tentar escrever, em vermelho, sua nova história no pós vida.
Rafael M. Watanabe

em terça-feira, 16 de fevereiro de 2010 4 comentários