Ollie.

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          Sempre estive de olhos fechados. Primeiro por criação. Depois por escolha – duas, na verdade – a primeira foi quando conheci um estranho e confiei a ele meus passos: fui parar num abismo; a segunda quando saí do abismo e percebi que era tão mais fácil continuar com os olhos fechados. Não ver não dói. É simples.

          Gosto de dizer que sou verdadeiramente cego, e com razão. Escolhi ser assim e assim sou, verdadeiramente e orgulhosamente. Afinal, onde está a graça de se ter nascido privado da visão ou ter sido forçado a entrar num caminho sem luz? Eu não, sou cego porque não quero ver, escolhi isso. E quem não quer ver, logicamente, não vê.

          Fechei os olhos e, desde então, caminhar ficou mais fácil. Mas hoje, depois de tudo, depois de tudo que aconteceu e continua acontecendo, depois de sofrer, de me cansar, de me machucar, de machucar, de trombar, de cair, levantar, sorrir, acenar e não lembrar da moça que me dirigiu um sorriso, subir morros em passos falsos, confiar nos caminhos alheios, eu continuei de olhos fechados.

          Afinal, sou cego. E a vida é bem mais simples nos meus tons de cinza.

N.A.: Resultado de uma experiência minha. Hoje acordei duas vezes: a primeira quando o despertador tocou; a segunda quando minha mãe me mostrou uma carta escrita por uma pessoa próxima. E, pela segunda, me veio um pensamento que, deixado ao livre acaso e ao teclado solto, resultou nisso. É novo e me dá medo.


em sábado, 24 de julho de 2010 3 comentários

DIAFRAGMA – Capítulo Primeiro.

– árvore.

              Jeshil: “Os maiores desejos, Blozë, são transmitidos nos menores dos atos.”
              Blozë: “Você não deveria confiar muito nos seus olhos, Jeshil.”

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          Uma vez, quando eu ainda era pequeno o bastante para não entender porque os adolescentes se preocupavam com o vestibular, eu estava sentando no banco de trás do velho Escort dos meus pais esperando por minha mãe – que, por sua vez, estava logo adiante, comprando cigarros numa padaria que futuramente eu passaria a visitar com mais freqüência – quando presenciei algo que deu inicio ao que, hoje, é um dos meus maiores problemas internos (e eu não me refiro à puberdade, nem ao vestibular).

          Um casal de namorados – que mais tarde fui entender melhor o que era – aparentemente discutia. Digo ‘aparentemente’ porque hoje tenho minhas dúvidas quanto a isso. Afinal, eles podiam estar conversando e ela se exaltou, ou podiam estar se despedindo por um longo tempo e ela não queria aceitar a separação. Ou eles... Ela estava chorando, é isso.

          A imagem que tenho guardada da moça aos prantos foi mais do que suficiente para me certificar de que ela sentia uma profunda tristeza, mesmo naquela época – quando, pra mim, profunda tristeza era não ter uma festa de aniversário ou, talvez, ter ralado o joelho quando brincava de pega-pega na escola. E, mesmo naquela época, a ferida da moça me pareceu tão fresca que chegava a arder em mim, que nem ao menos sabia que ardência era aquela. Mas incomodava. Incomodou o bastante para eu querer saber sobre, quando minha mãe voltou ao carro, com um maço de cigarros e pastilhas anti-fumo (eu não conseguia entender o desejo paradoxal da minha mãe em parar de fumar).

          — Por que ela está chorando, Mãe?

          Ao contrário do que parece, e ao contrário do que eu penso hoje – porque, hoje, aquela cena deixou de acontecer apenas fora do carro, que delimitava meu presente mundo, e começou a se repetir no meu atual presente – a moça, o homem e o choro da primeira não assaltaram a vista de minha mãe, nem de nenhum dos pedestres que por ali passavam, como assaltara a minha. E, na época, me soou como uma ofensa quando minha mãe me mostrou isso com sua tão simples e automática resposta:

          — Ela, quem, Jeshil?

          Já estava me esquecendo, desculpem. Não me chamo Jeshil, apesar de ter o desejo de me chamar assim. E por questão poética, e por hora particular, decidi rebatizar as pessoas que mais apareceriam no meu relato, quando o decidi fazer. Mas voltaremos a isso depois; porque agora aquela conversa com minha mãe é de mais importância.

          — Ela, mãe. – apontei pela janela do carro, para alguns metros à esquerda. – Atrás das árvores, brigando com aquele moço.

          Minha mãe teve que fazer um pouco de esforço para ver o casal, e depois para entender o que estava acontecendo. E ela logo soube, porque deu um estalo com os lábios – como se quisesse dizer que não era nada – e deu partida no carro. Quando percebeu que eu ainda esperava por uma resposta, olhando pelo retrovisor, virou para mim como quem se despedia do filho na entrada da escola.

          — Ela devia estar triste com alguma coisa que ele fez, só isso.

          — Será que ele bateu nela? – a essa altura eu já estava no vão entre os dois bancos da frente, segurando para não rolar nas curvas.

          — Acho que não, filho. Eles só estavam conversando.

          — Então por que ela chorava?

          Hoje, eu não sei se eu era uma criança curiosa ou chata. Pela resposta da minha mãe, acho que eu ainda estava um pouco atrás do limite entre a primeira e a segunda opção.

          — Ela devia estar machucada.

          — Mas... Então ele bateu nela!?

          Minha mãe aproveitou a parada em um cruzamento para me olhar direto nos olhos, e foi aí que a semente da perigosa ‘árvore das decisões precipitadas e impensadas’ foi semeada pela primeira vez.

          — Sabe, Jeshil, você ainda não entende essas coisas, e de certo não vai entender o que eu vou dizer agora, mas, às vezes, quando os adultos se amam, esse amor pode chegar a tal ponto que ele deixa de ser apenas lindo, como era pra ser, e passa a ser destrutivo. Quando isso acontece, as pessoas se machucam, e a culpa não é delas, nem de ninguém.

          — Então é de quem? – perguntei como se não tivesse ouvido a última frase – O pai sempre disse que se existe a culpa, ela tem que ser de alguém.

          Minha mãe hesitou um pouco antes de responder, como se estivesse – e percebo isso só hoje – falando de algo que já fora pessoal, pra ela.

          — A culpa é do amor, Jeshil. É dele.

          Daí ela deu um sorrisinho, e eu me pus a olhar o caminho de volta pra casa, sem dizer nada. Naquele momento, eu refletia – ao máximo que me era permitido, pela idade – sobre o que havia acontecido, sobre a moça, o choro, a tristeza e a conversa com minha mãe. E depois de uns cinco ou seis quarteirões, eu cheguei à conclusão de que, não importasse o que viesse a acontecer, eu nunca, em hipótese alguma, amaria alguém.

          E a árvore brotou.


em segunda-feira, 12 de julho de 2010 5 comentários

Escalonamento.

Eu sempre precisei de um lugar pra escrever aquilo que era meu, o que me era mais íntimo, por isso, de certo, sempre tive um blog, ou um caderno, ou os dois (como hoje, por exemplo, tenho três). Mas nunca fiquei muito tempo com o mesmo blog, ou com o mesmo caderno, e eu não sei porque. Então, num desses dias que o tédio me tomou por inteiro e eu me pus a pensar sobre a vida, eu senti vontade de criar outro blog – que não divulgaria a ninguém – só pra escrever meus pensamentos, meus sentimentos mais crus. Sem metáforas, sem rimas, sem versos – ou melhor, sem a obrigação deles (porque, ao que parece, hoje, as pessoas dão atenção ao que você pensa/escrever se for bonito, profundo e bem trabalhado).

Decidi que chamaria “Dying on the Corner”. Mas não o criei. Na mesma linha de pensamento que me veio a ideia de criar o dito cujo, me veio seu final. Eu o abandonaria, claro, como abandonei tanto outros projetos. Mas ainda assim permaneceu a vontade, o desejo. Pra mim a escrita vem assim: como um desejo que não se aquieta enquanto saciado. E eu precisava de um lugar diferente do escrivaminha (onde decidi postar apenas textos ‘trabalhados’), por isso, engoli o desejo e bati o pé. Então, um dia (ontem, especificamente) eu pensei em tudo que poderia vir a falar nesses ‘textos crus’ e… O que são os pensamentos, senão nossas próprias ‘Notas do Autor’? E, bom, o resto é resto.

Em minhas notas, não esperem beleza, profundidade ou sentido. Aliás, não esperem sentido em nada que eu escrevo, porque em muitos textos, somente eu, e eu, vejo sentido. Outras vezes, se me fizer parecer dissertativo, peço que me perdoem, mas meu cérebro já é treinado pra respeitar essa ‘forma’. No mais, não mais.

PS: O título, escalonamento, veio de uma conversa aleatória com uma amiga, sobre um assunto que nos era comum. E eu gostei dele, apesar de não ter vinculo algum com o texto em si. Abaixo, segue um micro-conto que escrevi há algum tempo. Espero que gostem.

almodovar_penelope_sofiasanchez_mauromongiello          Estranho que quando partiram seu coração ao meio, passou a amar dobrado.

Rafael M. Watanabe


em domingo, 4 de julho de 2010 3 comentários